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Foto do escritorXiko Acis

O Longo Caminho da Conivência: Desconstruindo o Mito dos Valores Familiares como Fundamento Ético


➡ Cena 1: Pedro com 10 anos, acompanha a mãe na feira. Na barraca que vende limões, ela pede um desconto. Embora o feirante conceda o desconto, quando ele se vira para pegar o troco, a mãe sorrateiramente pega um limão e o joga na sacola. Pedro observa tudo sem falar nada.


➡ Cena 2: Pedro, agora com 12 anos, sai com o pai de carro para fazer compras. Ao voltar do supermercado, o pai abre um pacote de salgadinho e, após esvaziar, joga o pacote vazio pela janela do carro em meio ao trânsito. Pedro observa e não fala nada.


➡ Cena 3: Pedro, agora com 17 anos, vai ao jogo de futebol com o seu pai. Em determinado momento, o atacante simula uma falta na área e o juiz dá pênalti. O pai vibra e diz: “É isso aí!”. Pedro observa sem falar nada.


➡ Cena 4: Pedro agora com 22 anos tem uma prova difícil na faculdade. Ele não estudou para isso. Um colega fala que, se ele pagar um valor, ele passa cola. Pedro aceita sem falar nada.


➡ Cena 5: Pedro agora com 30 anos é gerente de vendas. Em uma viagem de negócios, Pedro gastou com bobagens mais do que podia. No seu relatório de viagem, ele colocou algumas notas de combustível a mais para compensar os gastos indevidos. Pedro agiu normalmente ao apresentar o relatório para a chefia.


➡ Cena 6: Pedro, agora com 40 anos, diretor de marketing, está sendo demitido por desvio de verbas do departamento. Pedro acha que sua demissão é injusta.


Quem é o culpado nessa história?

A trajetória de Pedro é um retrato nu e cru da construção de uma moralidade pessoal que se desvincula completamente da ética, revelando a falácia de que os valores familiares e religiosos, por si sós, são suficientes para formar indivíduos eticamente conscientes. Pedro não se tornou um desonesto ou um fraudador da noite para o dia; sua jornada até o desfecho de sua demissão é um acúmulo de pequenos atos de conivência e observação silenciosa, iniciados desde a infância, que moldaram sua percepção distorcida do certo e do errado.


Desde cedo, Pedro foi exposto a comportamentos que desrespeitam normas sociais básicas, praticados justamente por aqueles que deveriam ser seus exemplos de conduta: seus pais. Na primeira cena, ao ver a mãe furtar um limão, Pedro testemunha um ato que claramente vai contra o valor moral de não roubar. No entanto, a reação silenciosa da mãe e a falta de repreensão criam uma normalização de pequenos atos desonestos como algo aceitável. O feirante é prejudicado, mas para a mãe, o ganho pessoal, por menor que seja, se sobrepõe ao princípio ético do respeito ao bem comum.


Mais tarde, Pedro observa o pai jogando lixo pela janela do carro. O ato é simples, mas carrega consigo a perpetuação de uma indiferença pelo espaço público e pelo bem-estar coletivo. Novamente, a moralidade particular do pai, que privilegia a conveniência sobre a responsabilidade, é internalizada por Pedro sem questionamentos. O espaço público, algo que deveria ser cuidado por todos para o bem comum, é desrespeitado sem que Pedro sequer pondere sobre as implicações éticas desse ato.


No futebol, a celebração da fraude do atacante pelo pai de Pedro reforça um valor distorcido: se o resultado for vantajoso, os meios, ainda que fraudulentos, são justificáveis. Essa mentalidade é a antítese da ética, que preza pela justiça e pela honestidade. Pedro, mais uma vez, internaliza o comportamento sem refletir sobre as consequências mais amplas da simulação no esporte, uma metáfora para a vida em sociedade.


Chegando à faculdade, Pedro recorre à cola, sem ter estudado. Essa decisão é uma continuidade lógica dos valores que ele aprendeu observando seus pais: o atalho é sempre uma opção válida quando a situação é adversa. A moral, que deveria orientá-lo a agir corretamente, é facilmente subvertida pela conveniência imediata e pela falta de uma reflexão ética mais profunda. Pedro, agora, age não apenas como observador, mas como agente da transgressão.


Como gerente de vendas, Pedro finalmente começa a praticar fraudes financeiras de forma ativa, manipulando relatórios para cobrir gastos pessoais. Ele já não se vê como alguém que está cometendo um erro grave; ao contrário, essas práticas foram normalizadas por anos de exemplos pequenos, mas consistentes, que lhe ensinaram que, se ninguém está olhando ou questionando, o comportamento não só é aceitável, mas esperado.


Por fim, quando Pedro é demitido por desvio de verbas, ele se sente injustiçado. Esse desfecho trágico revela uma desconexão total entre suas ações e a percepção das consequências. Para Pedro, suas práticas eram normais, aceitáveis e, de certa forma, "autorizadas" pelo exemplo silencioso de sua criação. A ética, em sua essência de busca pelo bem comum e pela justiça, nunca fez parte de sua formação.


Desconstruindo o Mito dos Valores Familiares como Fundamento Ético

Essa história desvela um ponto crucial: a crença de que ética se aprende em casa é não apenas simplista, mas potencialmente perigosa. Valores familiares e religiosos, enquanto importantes, são fundamentalmente normativos e limitados por sua natureza local, temporal e cultural. Eles não são, por definição, reflexivos ou universais; ao contrário, são frequentemente rígidos e pouco questionados, o que pode levar à perpetuação de comportamentos prejudiciais, como visto na história de Pedro.

A moral familiar ensina o certo e o errado dentro de um contexto específico, mas carece da dimensão crítica da ética, que exige um exame constante e uma aplicação universal de princípios. A ética, enquanto busca pelo bem comum e pela justiça, não pode ser reduzida a meras regras familiares ou preceitos religiosos. Ela é uma prática de liberdade e consciência que deve ser aprendida, exercitada e revisitada constantemente.


Desmistificar a ideia de que a ética é ensinada por valores familiares ou religiosos é essencial para evitar a formação de novos "Pedro's". A verdadeira ética se aprende através da reflexão crítica, do debate aberto e da disposição para questionar normas estabelecidas. É uma jornada que vai além do "faça o que eu digo" para o "entenda o porquê isso é importante para todos".


A Urgência de uma Educação Ética Reflexiva

A construção de uma sociedade eticamente consciente depende de um compromisso coletivo com a educação ética que vá além das fronteiras do lar e da igreja. Para que a ética se torne uma prática viva, é necessário que ela seja ensinada de forma estruturada e contínua, incentivando a reflexão sobre as implicações das ações individuais no bem comum.


Ao desafiar a noção de que a ética se aprende apenas em casa, abrimos espaço para uma educação que promove a responsabilidade, a justiça e o respeito mútuo como valores universais. Essa é a verdadeira missão da ética: não impor regras, mas inspirar indivíduos a agir pelo bem de todos, transcendendo os limites do familiar e do particular para construir um mundo mais justo e consciente.


Pedro não é apenas uma história sobre falhas pessoais; ele é um reflexo de como, sem reflexão ética, nossos valores podem se tornar o nosso maior obstáculo à convivência harmoniosa. A transformação começa com a compreensão de que ética é um exercício constante de revisão, questionamento e, acima de tudo, uma busca incessante pelo bem comum.


E você? Quantos Pedro’s conhece ou conheceu?

 

Xiko Acis | Provocador sobre Ética e Moral xk@xikocis.com.br  +55 11 96466-0184 Newsletter #108

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